Por vezes, vivemos a vida de uma forma tão intensa que nos
transporta para um estado de encantamento, porém, algo nos toca e
nos faz acordar desse limbo, nos desperta do encantamento …e,
verificamos que os ideais que procurámos uma vida pode não ter sido
um ideal, não uma realidade mas sim uma utopia.
( Citando Jean-Jacques Wunenburger)
Todo o pensamento político é inseparável da representação de um
modelo ideal que serve de norma e de fim às ações coletivas. A
idade de Ouro viu-se suplantada por uma forma de sociedade
predominantemente racional, que se foi associando a um tempo
messiânico a que a Idade Moderna viria a chamar utopia. Em que
medida tem a utopia um destino que se liga, ou se cruza, com projeto
de racionalização política da modernidade? E se, de fato, a utopia
e filosofia política se tornaram inseparáveis, que revela a
história das utopias sobre esta racionalização do mito
sociopolítico? Em que medida, a politização do imaginário utópico
não terá conduzido a um empobrecimento, a uma redução, um
ajustamento dos próprios ideais da Cidade? A utopia, enquanto
projeto literário de criação de uma sociabilidade e humanidade
ideais, é um género tardio, típico do Renascimento.
Desenvolve-se segundo um modo descritivo. Desenhando esboços,
enumerando costumes ou leis, nos antípodas dos processos de
investigação, análise e argumentação próprios do trabalho
conceptual da filosofia política...
Contudo, a utopia, já nos exercícios literários do Renascimento e,
mais tarde, nas tentativas de experimentação “em tamanho
natural”, nunca deixou de ter afinidades com a racionalidade sua
contemporânea. Ao procurar, a título de simulação, produzir uma
imagem pura e transparente de uma ordem social, técnica, económica,
política, etc., a utopia recorreu a normas de pensamento próximas
da racionalidade filosófica do período clássico...
A utopia não se terá tornado, afinal, uma das expressões laterais
do ideal do racionalismo filosófico, que visa tornar o real
transparente e, assim, equivalente à imaterialidade cristalina do
conceito? Não construiriam ambos os seus espaços, mental e social,
segundo a mesma lógica? Importa, pois, perguntarmo-nos de que modo a
utopia, nascida das imagens míticas antigas, foi progressivamente
adotando uma ótica intelectual destinada a transformar as realidades
concretas em objetos ideais e translúcidos...
O género utópico, nascido com Thomas More em 1517, e que continuará
a ir buscar a More imensos dos seus códigos retóricos, procura
delinear planos de cidades e configurar agrupamentos que permitam
romper com as imperfeições humanas comprovadas pela história. Mas
este cenário de sociedade ideal implica, sobretudo, uma luz nova
sobre a realidade, mais do que sua transformação efetiva ou uma
mudança radical da natureza das coisas. O método utópico consiste,
essencialmente, num exercício ótico que deverá permitir olhar a
realidade humana sob uma luz viva, capaz de eliminar as sombras,
fazer aparecer o oculto, ou seja, metaforicamente, os males da
sociedade. Neste sentido, o utopista não inventa nada de
verdadeiramente novo, antes clarifica e purifica o antigo por um
efeito de reflexão e de inversão, que resulta essencialmente de
jogos de espelhos e de luz...
A utopia, na medida em que opõe ao real imperfeito a visão de uma
ordem ideal, mostra-se, pois, acima de tudo, uma técnica de mudança
do olhar. Amainar as coisas e emendar os homens significa menos
modifica-los do que arranca-los à obscuridade e à confusão
espontâneas da vida. O utópico é, antes de mais, alguém que
espera que um olhar de uma intensidade deslumbrante tenha p poder de
iluminar a humanidade, fazendo desaparecer espontaneamente, à
velocidade da luz, todas as imperfeições e malquerenças. O utópico
converte, pois o sol em olho e o olho num poder magico de transformar
o homem e a sociedade...
… A época em que emerge a utopia moderna vê, pois, coexistirem,
misturarem-se e combaterem-se duas formas de utopia, duas Cidades, a
espiritual e a histórica, e, assim, dois modelos de pensamento: um
que ascende das trevas da alma para a luz que ultrapassa, outro que
procura impor a sua luz a tudo aquilo que encontra. No primeiro caso,
a filosofia associa-se à experiência do heterónimo, do claro /
escuro, a um pensamento que encontra a resistência do que não pode
ser pensado; no segundo caso, a filosofia desenvolve-se como uma
vontade de autonomia, um desejo de iluminar toadas as coisas para, de
algum modo, conseguir que o real se torne racional e o racional em
real, de acordo com a fórmula de Hegel.
...A utopia moderna, à semelhança da razão cientifica e política,
não irá, também ela, ser tentada a transpor os seus limites, a
depurar o real de qualquer zona de sombra e a transformar a Cidade
num artefacto translúcido? Não irá a espiritualidade visionária
converter-se numa espécie de voyeurismo que despersonaliza tudo,
varrendo a esfera do visível num desvario alienante? Em resumo, não
se converterá a utopia numa e ideologia totalitária, ao objetivar e
radicalizar o seu simbolismo inicial? Paralelamente, a autonomia
reivindicada pela razão não irá abrir as portas à
auto-suficiência e ao orgulho, e , consequentemente, gerar uma razão
que recusa em si própria qualquer sombra e, fora de si, qualquer
resistência? Não vestirão a razão auto-referenciada e a utopia
autárquica a pele do totalitarismo?...
C. S.
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